segunda-feira, 17 de agosto de 2009

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Um diferente modo de olhar

Este texto foi publicado por mim na "Estação", mas coloco-o aqui também porque gostaria de o compartilhar convosco.

"Há duas maneiras de se alcançar Despina: de navio ou de camelo.
A cidade apresenta-se de forma diferente para quem chega por terra ou por mar. O cameleiro que vê despontar no horizonte do planalto os pináculos dos arranha-céus, as antenas de radar, os sobressaltos das birutas brancas e vermelhas, o fumo das chaminés, imagina um navio; sabe que é uma cidade, mas imagina-a como uma embarcação que pode afastá-lo do deserto, um veleiro que esteja para partir, com o vento que enche as suas velas ainda não completamente soltas, ou um navio a vapor com a caldeira que vibra na querena de ferro, e imagina todos os portos, as mercadorias ultramarinas que os guindastes descarregam nos cais, as tabernas em que tripulações de diferentes bandeiras partem garrafas na cabeça umas das outras, as janelas térreas iluminadas, cada uma com uma mulher que se penteia.
Na neblina costeira, o marinheiro distingue a forma da corcunda de um camelo, de uma sela bordada de franjas refulgentes entre duas corcundas malhadas que avançam balançando; sabe que é uma cidade, mas imagina-a como um camelo de cuja albarda pendem odres e alforjes de fruta cristalizada, vinho de tâmaras, folhas de tabaco, e vê-se ao comando de uma longa caravana que o afasta do deserto do mar rumo a um oásis de água doce à sombra cerrada das palmeiras, rumo a palácios de espessas paredes caiadas, de pátios azulejados, onde as bailarinas dançam descalças e movem os braços para dentro e para fora do véu.
Cada cidade recebe a forma do deserto a que se opõe; é assim que o cameleiro e o marinheiro vêem Despina, cidade de confim entre dois desertos.
"

Este texto é um excerto da obra "Cidades Invisíveis" de Italo Calvino. Trata-se de uma parte da discrição da cidade de Despina, a qual, com um pouco de imaginação e livre pensamento, se associa à nossa cidade.
O que sobressai deste texto é a maleabilidade do olhar de cada um. Todos nós temos um modo peculiar de olhar para ela, com uma crítica mais ou menos elaborada, com direito a comentário de possível solução ou modificação do que já existe. E porque críticar não custa, e propôr não prejudica, todos nós, uns mais que outros, imaginamos o futuro que por vezes, assente no passado, se materializa no presente de cada um.

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